top of page

Cláudio Aguiar

    O pintor Hugo de Paula, em sua longeva existência (1917-2013), viveu como um autêntico solitário, um grande artista arredio a toda forma de manifestação que significasse visibilidade para seu trabalho. Caso raro entre os integrantes da numerosa família dos artistas, quase todos, marcados pela avidez de glória e, na maioria dos casos, de incontroláveis arroubos de vaidade. 


    No caso do artista pernambucano estamos diante de uma atitude radical. A vida do pintor permaneceu obscurecida pelo voluntário anonimato e desapego ao reconhecimento de terceiros. E, para minha tristeza (apesar de algum esforço de minha parte), seu abstruso comportamento foi incapaz de provocar entre seus poucos amigos qualquer reação no sentido de eliminar ou atenuar a permanente sombra que cobria sua valiosa obra, mesmo que para isso fosse necessário contrariá-lo. Quando viveu no Rio de Janeiro, de 1939 a 2006, nem seu convívio com alguns artistas conhecidos e consagrados foi suficiente para fasciná-lo a arvorar-se como se fosse ou desejasse ser um deles.    


    A meu ver, não basta justificar o ocorrido com aquela assertiva de que a culpa foi dele. Em se tratando de Hugo de Paula não cabe essa lógica, porque ele foi o típico exemplo do artista voltado absolutamente para o prazer de pintar, de desenhar e, raramente, de esculpir. Praticou, como já escrevi noutra ocasião, a arte pela arte. A ele bastava tal gesto. 


    Gesto, aliás, inusitado e surpreendente, que se deu na mesma intensidade quando, antes de morrer, pediu, como último desejo, que suas cinzas fossem jogadas no jardim do Museu de Arte Moderna (MAM), do Rio de Janeiro, espaço que ele sempre visitou com notória devoção ao tesouro ali guardado. Vejam o sentido simbólico desse gesto: o pintor Hugo de Paula jamais desejou ou julgou-se ser um artista merecedor de ver em algum museu (e muito menos no acervo do MAM) uma ou mais obras de sua lavra. Não. Desejou apenas que suas cinzas sejam jogadas no jardim do museu. Ato praticado silenciosa e anonimamente. De preferência numa hora qualquer de qualquer dia da semana, de qualquer mês do ano. E mais: que ninguém saiba, enfim, se elas, de fato, ali serão deixadas como preito de reverência do artista aos grandes mestres que também dormem no interior do museu carioca, mas sob o fulgor das letras e das luzes chamando a atenção para suas produções. Somente a ele importou saber que algo seu – as cinzas – repousarão para sempre por ali. Assim era o pintor Hugo de Paula.    


    Vale, aqui, recordar, com brevidade, uma das lendas gregas que iluminam a biografia de Apolo, cuja moral parece adaptar-se bem ao amor que Hugo dedicou à Arte. Conta-se que, durante muito tempo, quase todas as belas mulheres gregas fugiram dos assédios de Apolo. Somente Clitia, uma ninfa das águas, filha de Tétis e de Oceano, conseguiu ter um brevíssimo caso de amor com Apolo, mas foi por este abandonada. A ninfa ficou de tal sorte ferida com a atitude do belo deus, que, a partir de então, perdeu a vontade de viver e passou o resto de seus dias transtornada, entregue, inclusive, ao descuido de sua beleza feminina, desleixada com a roupa, os cabelos em desalinho, sentada sobre a terra áspera e nua nos lugares mais solitários e inóspitos da campina. Ademais, mantinha o olhar fixo e perdido no horizonte à espera de um acontecimento especial: que, de repente, Apolo surgisse a guiar o carro do Sol e, tomando-a pelo braço, a levasse a reviver novo amor ao longo da sonhada trajetória pelo firmamento. 


    O poeta Ovídio, ao narrar essa lenda, disse que a desditada Clitia  ficou durante nove dias e nove noites imóvel, alimentando-se, coitada, de suas próprias lágrimas. Foi nesse momento que os deuses, penalizados pelo estado lastimável da ninfa, resolveram  transformá-la num girassol, o qual, até hoje, todos os dias revive o mesmo movimento em torno da luz solar, como se esperasse dela surgir o carro do amado Apolo. 


    Qual a moral dessa lenda? É que o pintor Hugo de Paula, em nenhum momento, chegou a descobrir, como fizeram as outras mulheres gregas que fugiram dos assédios de Apolo, que era preciso resistir e fugir do fascínio da beleza do deus. Ao pintor bastou o prazer de criar. Com isso privou os pobres mortais de admirarem sua obra e, em conseqüência, enaltecessem a força de seu talento. Em verdade, por trás da encantadora e sonhada luz do carro do Sol, guiado por Apolo, que tanto ofuscou os olhos da ninfa Clitia, pode ocorrer o mesmo que se dá com a borboleta, que, ao se apaixonar pela beleza da chama tanto se aproxima dela que termina consumida por seu fogo abrasador. 


    Hugo de Paula, em seu exagerado sonho de viver o amor da arte pela arte, também deve ter se apaixonado pela chama do carro de Apolo, que ilumina, atrai e aniquila indefesas borboletas.  Embora ele tenha vivido a prática do culto solitário da arte pela arte, a verdade é que criou um importante acervo artístico – painéis, telas a óleo, desenhos,  ilustrações de livros e revistas e algumas esculturas – ainda quase intacto. Essa obra, porém, espera por alguma iniciativa capaz de preservá-la e chamar a atenção da crítica e do público em geral, porque, como ocorre nesses casos, existe sempre o perigo de a  borboleta ser atraída e consumida, definitivamente, pela chama do “carro do Sol de Apolo”. 


    Por isso, agora, mais do que nunca, torna-se necessário e urgente que nós, os amigos do pintor pernambucano, façamos um esforço no sentido de garantir a sobrevivência desse conjunto integrado por quase um milhar de obras. Essa iniciativa, enfim, significará prestar um valioso serviço não só à memória do artista, mas, também, à arte pernambucana e, por extensão, brasileira, evitando-se a possibilidade de sua dispersão ou mesmo desaparecimento. 


    Sobre seu valor não resta nenhuma dúvida. Afinal, como escreveu o crítico de arte André Seffrin, a obra de Hugo de Paula pode ser comparada como a de um “irmão de Di Cavalcanti e Floriano Teixeira”, porque retratou “a gente do povo, sobretudo habitantes de pequenas comunidades rurais, cantores, pescadores, jogadores de futebol, operários. Ele pinta também o carnaval, o circo, o baile de roça, a capoeira. Um corpo nu de mulher. Um idílio pastoril. Um aquário. Suas mulheres exuberantes têm um sensualismo que é o de um irmão de Di Cavalcanti e de Floriano Teixeira. Todavia, temática e formalmente, ele é multifário. Cor e forma subitamente dão lugar à abstração geométrica, e aí nasce outro pintor. Como o Cícero Dias dos anos 1940. No que diz respeito ao alegórico, mantém certa identidade com Newton Rezende, pintor igualmente injustiçado pela contemporaneidade”. 

 

​

bottom of page