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     Na aventura de traçar um hipotético panorama das artes visuais em Pernambuco verifica-se a importância que o desenho tem neste contexto. Refiro-me ao desenho como arte gráfica autônoma, desapegado das amarras de auxiliar da pintura, dono de sua própria práxis, como, por exemplo, é a obra de artistas como Maria Carmem, Ladjane Bandeira, Petrônio Cunha, Cavani Rosas, Maurício Castro, José Paulo, Raoni Assis, Bozó do Bacamarte e Antônio Paes, entre muitos outros. 
 

     Outros, porém, mesmo praticando o desenho como auxiliar de outras categorias de expressão visual, como a ilustração, a história em quadrinho, a charge ou o desenho de humor de modo geral, são o motivo básico destas notas. Até porque esse “auxílio” não transforma suas obras em apêndices da arte, pois a autonomia do traço marca o desenho como uma assinatura, ou pela identificação de um estilo gráfico definido. Refiro-me, por exemplo, a Perci Lau, autor das ilustrações “Tipos e aspectos do Brasil”, obra seminal para o estudo da geografia humana editada nos anos de 1950 pelo IBGE; o desenhista e pintor Manoel Bandeira, autor de inúmeras ilustrações documentais do nosso patrimônio histórico e artístico de pedra e cal, inclusive das ilustrações do importante livro “Segundo Guia Prático, Histórico e Sentimental de Cidade Brasileira”, de Gilberto Freyre; o importante desenhista Augusto Rodrigues, criador da Escolinha de Arte do Brasil, que cedo foi morar no Rio de Janeiro e lá, paralelamente à sua vida de artista moderno, desenhou charges para a Imprensa; ou ainda Aloisio Magalhães, pioneiro do design no Brasil, um dos criadores da Escola Superior de Desenho Industrial, um dos criadores em Recife do Gráfico Amador, núcleo de editores, escritores e designers de obras impressas. Aloisio, além disso, conservou sua produção como desenhista autônomo e pintor. 
 

     Com estes dados sobre os desenhistas pernambucanos, queremos embasar a obra de Hugo de Paula (José Hugo Arruda de Paula), o artista foco dos comentários que seguem, e citar também dois outros extraordinários desenhistas da Imprensa nacional, os também pernambucanos Péricles e Carlos Estevão: o primeiro criador do fascinante personagem “O Amigo da Onça”, e o segundo autor de charges e histórias humorísticas, ambos editados semanalmente, e por décadas, na revista O Cruzeiro.
 

     Não é simples, porém, apresentar, em palavras, a obra de Hugo de Paula, pois sua arte traçou caminhos entre diversificados modos e costumes do povo do Nordeste, o que sugere uma significativa anotação da sociologia cultural do seu povo, como, também, a descrição da pobreza e dos abismos culturais entre a dura realidade dos camponeses, a perversidade dos capatazes e a opulência dos usineiros. 
 

     Abismos sociais profundos, como esses, revelam-se nas séries de desenhos e, posteriormente, nas pinturas e nas raras esculturas que produziu em sete décadas de trabalho. Estas séries, ou mesmo temas, por melhor dizer, desenhadas por Hugo de Paula ao longo de sete décadas, mostram a vida rural com suas inóspitas paisagens e as cenas da cultura lúdica camponesa, como as brincadeiras do povo (mamulengo, pastoril, burrinca, cabra-cega, etc.), a vida mundana dos bares e cabarés (bas fond como ele intitula) das zonas portuárias e da zona do Mangue do Rio de Janeiro. Seguem-se paisagens urbanas repletas de personagens que lhe acompanharam por toda a vida, tais como casais abraçados, trabalhadores do cais do porto, cidadãos comuns ou vagabundos e miseráveis que colhem comida no lixo, fachadas das casas pobres e também seus interiores, as mulheres carregando potes na cabeça, como a bíblica samaritana, e moças tomando banho de rio, que lembra o bíblico “Banho de Suzana”, também encontrado na obra xilográfica de Gilvan Samico, e, para fechar o enfoque feminino, temos uma série de desenhos de moças na praia, visões de um nordestino sobre a sensualidade carioca. 
     

     Nos grafismos cariocas mais antigos, porém, temos um ponto de muito interesse que é um conjunto de desenhos geometrizados realizados entre as décadas de 1930 e 1940, obras como “Progresso” ou “Granito”, magistralmente bem desenhados, que o coloca no seio da modernidade artística brasileira, onde já estava ouro pernambucano, Vicente do Rêgo Monteiro, participante da famosa exposição no Teatro Municipal de São Paulo que integrou a Semana de Arte Moderna de 1922, ao lado de Emiliano Di Cavalcanti cuja obra tanto interessou a Hugo.
 

     Hugo de Paula foi um artista engajado na esquerda por consciência civil,  por observar os aspectos da injustiça inclusos nos supracitados abismos sociais, mas, também, pelas ligações afetivas e culturais com seu irmão, o importante político Francisco Julião (Francisco Julião Arruda de Paula), advogado e ideólogo da segunda fase das Ligas Camponesas (a primeira fase das Ligas foi liderada por Gregório Bezerra, nos anos de 1940), organização de base sindicalista dissolvida em 1964 pelo regime militar implantado no Brasil.
 

     Sua ligação com a esquerda, porém, aconteceu muito antes da ligação de Julião com as Ligas Camponesas. No Rio de Janeiro, nos idos de 1945, trabalhou ao lado de jornalistas de esquerda, como Joel da Silveira, editor da revista Diretrizes, seu amigo que o indicou como desenhista de O Cruzeiro na vaga de Tomaz Santa Rosa, o pintor paraibano que, também, foi ilustrador e renovador da cenografia teatral brasileira com o trabalho que fez para a peça Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues. Fazia parte do seu restrito grupo de amigos, do qual participavam também Nelson Rodrigues e seu irmão, o desenhista Augusto Rodrigues, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Austregésilo de Athayde, David Nasser e o seu muito amigo, cineasta, Jean Manzon.
 

     Podemos dizer, porém, que a vivencia de Hugo com o meio cultural vem desde 1936, quando tinha apenas 19 anos e ajudo a colocar em circulação a revista Sargaço, e montou seu primeiro ateliê no sobrado ao lado do Mercado da Ribeira, lugar onde o Centro Cultural Humberto Campos tinha sua sede e realizava seus atividades literárias e educativas na cidade de Olinda. Todo isto aconteceu duas décadas antes do “Movimento da Ribeira”, que nasceu em 1965.
 

     Conta Cláudio Aguiar no livro “Francisco Julião. Uma biografia (da Civilização Brasileira editora ano 2014), que a atividade do “Centro Cultural Humberto de Campos” seria pioneira na característica atividade do Centro Histórico de Olinda, como “a cidade dos artistas”, e que Hugo de Paula seria um dos pioneiros da comunidade artística em que a cidade então se transformou. Um evento que fortalece esta ideia é a exposição coletiva, em 1938, no Palácio dos Governadores, que hoje é a Prefeitura de Olinda, onde o jovem artista Hugo de Paula estreou, galhardamente, com um grupo de mais de 30 desenhos. 
 

     Mas temos que concordar que sua vida como artística começou no Rio de Janeiro, para onde migrou em 1941, quando entrou em contato com importantes artistas modernos, entre eles Tomaz Santa Rosa, que lhe influenciou tecnicamente nos seus esfumados feitos em nanquim ou crayon, e Di Cavalcanti, que admirou, à distância, sua maneira formal de desenhar a figura humana. A sinuosidade do traço, tão cantada por Oscar Niemeyer na afirmação da identidade da arquitetura brasileira, tocou inúmeros artistas da mesma época, inclusive Hugo que mostra isto nas séries Moças no Banho, Samaritanas (carregando potes na cabeça) e Mulheres na Praia. Além disso, o traço econômico, elegante e definitivo, resultante da mudança do Recife para o Rio, traça a assinatura do artista maduro que se pode ver em várias séries, notadamente nos citados desenhos de mulheres e nos desenhos da série Cais do Porto.
 

     Esta exposição não é apenas uma homenagem ao importante artista quase desconhecido aqui, é um resgate que propõe e possibilita, através do rico conteúdo destinado a pesquisas, completude da visão histórica da arte do século XX, realizada em Pernambuco ou por pernambucanos.
 

     Eis aqui, portanto, uma síntese da obra de Hugo de Paula, surpreendente artista que tem, entre diversos aspectos, um interesse a mais para a educação que se pratica no Recife através da arte, sendo a Galeria Janete Costa um dos núcleos mais ativos. Exposição que é um panorama da vida do povo nordestino, antes das transformações pelas quais passamos nas últimas três décadas com a revolução cibernética. Em belíssimos desenhos, e de forma exemplar, a juventude verá uma obra testemunha da vida camponesa e de um olhar pernambucano sobre a grande cidade do Rio de Janeiro.   

Hugo de Paula – visões do povo nordestino
Raul Córdula

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